PRELÚDIO:
CARTA DE SINDARA.
Creio que você vai achar no mínimo interessante,
depois de tudo o que aconteceu, enviar-lhe esta carta. Não quero justificar-me
através dela, sei como pensa e qual sentimento tem por mim - talvez raiva, ódio.
Embora eu sinta sua falta, isso não interessa, mas é importante que você
entenda os fatos.
A história é mais ampla. Não se trata de mim, de
você, do seu pai, da disputa de poder ou dos reinos. É algo infinitamente
maior. Então para alguns pode ser irrelevante falar de fatos que ocorreram
antes do meu nascimento, afinal o que sou, quem sou, o poder e respeito que
adquiri em meu país e o que fiz pela minha nação são coisas às quais as pessoas
dão mais crédito.
Falar do passado, dos fantasmas, daqueles que se foram
e daqueles que ainda estão aqui nas sombras, num primeiro momento, pode parecer
supérfluo, mas acredite, não é. A história deste mundo e minha história se
entrelaçam com a de alguns personagens desta narrativa. Talvez não acredite em
mim, ou pense que estou tramando algo, pois sei que a esta altura está se
perguntando: Mas por que escrever a você?
Talvez por ter confiado em ti e principalmente por
amá-lo, mas a verdade é que não sei, e outra pergunta vai se fazer. São tantas
coisas na minha cabeça e ainda me preocupo com a maneira como você irá receber
tudo, mas a principal pergunta que deve fazer é: Como ela sabe tudo isso?
A resposta é simples: eu fui atrás
do olho do tempo. Meu objetivo era ver o futuro, mas ele somente mostrava o
passado; o futuro ainda não estava escrito e dependia de infinitas decisões do
presente. Não me importei com este fato e apenas olhei através do tempo.
Você não tem noção do quão louco foi
quando anos, vidas e eras se passaram em questão de minutos. Isso fixa na mente
como as sanguessugas do pântano de Odro grudam em suas vítimas. Aquilo exigiu
de mim um esforço sobre-humano, transitei entre a sanidade e a loucura, pois eu
vi, senti, chorei e gritei com estas pessoas. Eu era todas elas e ao mesmo
tempo era Sindara.
O olho do tempo, além de um artefato
mágico poderoso, é um arquivo de tudo que ocorreu, e trabalha o passado de
acordo com o usuário, assim eu vi e senti todas as ações e fatos que levaram ao
dia de hoje. Houve necessidade de parar e escrever.
Tanta dor, sofrimento e mortes
desnecessários e para quê?
Como lhe disse antes, o que se passa
aconteceu alguns anos antes do meu nascimento. Tenho que resumir décadas de
fatos em poucas palavras, portanto perdoe-me se não estiver sendo bem
detalhista; faltaram algumas partes, porque de tudo o que foi visto, muita
coisa está se perdendo em minha mente. Talvez ao começar a ler você não entenda
uma coisa ou outra, mas saiba que está tudo bem amarrado e ao final da
narrativa você certamente entenderá.
Todos sabemos que o véu que separa
este mundo de sua camada inferior, Agonia, foi rompido muitos milênios atrás. Os
magos que o fizeram acharam que estavam se aproximando da morada dos deuses,
mas quando viram onde estavam, batizaram o lugar com este nome, que faz
referência ao suspiro final antes da morte. Tentaram inutilmente fechá-lo, mas
já era tarde e muitas criaturas romperam para o nosso mundo, entre elas orcs,
trolls, sombrios e espíritos.
Até aqui nenhuma novidade, aliás
você também sabe que vinte anos antes do meu nascimento, os centauros em sua
sede de poder e vendo seu declínio perante as raças existentes, soberbos
acreditaram que com seus conhecimentos em magia conseguiriam romper o véu,
entrar em Agonia, absorver seu poder
mágico e ainda fechar definitivamente os portais que levavam até lá. O quanto
foram tolos ou ingênuos não podemos saber, mas a verdade é que milhares deles
marcharam para Soronto, uma vila no reino de Damatia onde o véu é mais tênue, e
adentraram em Agonia.
Uma aliança se formou entre elfos, humanos,
anões e outras raças que, liderados por Círdan, marcharam até Damatia. Houve
guerra, mas a aliança venceu a batalha em nosso mundo e alguns magos elfos e
humanos infiltraram-se em Agonia, mas o pior já tinha sido feito. Os centauros
em Agonia fizeram uma tolice e abriram um portal para uma camada inferior do
véu. Quando Círdan chegou, eles tentavam, em vão, usar sua magia para fechar o portal.
Centenas - talvez milhares - estavam mortos por algo que queria sair da camada
inferior. A aliança e o restante dos centauros focaram naquele ser amorfo que
desesperadamente tentava se libertar.
Círdan utilizou uma magia antiga de
aprisionamento, semelhante à que aprisionou a deusa negra, passada de geração
em geração pela família real.
Houve o sacrifício de muitos
centauros para ajudá-lo, enquanto o selo aos poucos tomava forma. O poder das
sombras não quis se render facilmente e atacou a todos da forma que pôde, e não
houve um que não tenha sentido seu ataque físico ou mental. Quando Círdan terminou
o selo, apenas ele e outras quatro pessoas ainda estavam vivas: três magas,
Selene, Morlila e Tania, e seu guarda-costas Tanor. Uma raça inteira tinha sido
praticamente extinta. Soronto foi rebatizada como o cemitério de centauros.
Selene e Tania passaram para o nosso
mundo, mas quando foi a vez de Morlila, ela fugiu para dentro de Agonia. Ela estava
louca e Círdan teve que persegui-la, pois a amava e ela esperava um filho seu.
Dentro de Agonia, o mal a consumiu e
seu poder estava crescendo. Uma parte daquela criatura das trevas que tentou
escapar estava dentro dela. Círdan teve que lhe tirar a vida, não antes dela
decepar-lhe o braço esquerdo. Quando voltou ao seu mundo, estava mutilado
física e espiritualmente.
Agora, meu amor, quero dar um
pequeno pulo na narrativa que se segue para um ano e meio antes do meu
nascimento, ou seja, vinte anos atrás. Assim, aos poucos, mesmo em guerra
enviar-lhe-ei estas cartas, para que entenda como nos separamos e o que se
aproxima.
Sindara
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