CAPÍTULO 4
TALLIS E ITZANAMI
Em breve seu irmão Tallis iria buscá-la,
mas Itzanami ainda não se sentia preparada, tinha medo. As palavras dele ainda
martelavam em sua mente – o sacrifício de
retenção é libertador – mas ele não disse que é profundamente triste.
Suas mãos tremiam, seu estômago doía
como se agulhadas o atingissem sucessivamente, mas o pior eram as lágrimas. Não
estava pronta, não para o que viria. Sabia que as pessoas não iriam ver seu
rosto inchado, talvez este fosse o motivo de todas as mulheres usarem as
máscaras brancas. Mas isto não importava, o que importava era sua irmã.
Houve uma leve batida na porta. Talvez seja Tallis. Não, Tallis não bateria,
pedi que ninguém mais me incomodasse. Jejum
– que bela desculpa! Por que todos aceitam com naturalidade e eu não? Sou fraca
ou sou a única que pensa? Todos olham para mim esperando que eu seja ao menos
uma sombra de minha irmã, mas Nicte Ha está acima de todos, até de Tallis.
A porta voltou a bater. Queria
gritar para que se afastassem. Deve ser
meu mentor. É melhor não dizer nada e atender, tenho que manter as aparências. Abriu a porta e lá estava ela,
soberana, imponente, decidida e bela, tão bela quanto a natureza permitia que
um ser humano fosse. Seus cabelos negros, descendo por todo o corpo tocando a
pele morena e seu longo vestido negro – o símbolo dos viajantes a longa estrada
se destacavam em branco.
– Vai ficar apenas olhando? – Sorriu
ao perguntar.
Quando viu sua irmã Nicte Ha e a serenidade que ela
exalava, ficou com vergonha de suas emoções, afinal era ela que seguiria para a
longa viagem, era ela que se encontraria novamente com a Deusa. Se seu
sacrifício fosse grandioso, não haveria necessidade de nascer novamente,
ficaria ao lado da Deusa Sedna até os últimos dias. Nicte Há, a escolhida, a
oferenda suprema. Lembrou-se de escutar uma senhora um dia dizer a seus amigos:
– Itzanami nunca será escolhida, nunca se sacrificará,
ela é manca de nascença.
Apenas aqueles sem chagas ou defeitos podiam estar
entre os escolhidos, um a cada sete anos, desde os primeiros tempos e para
sempre, era o que os viajantes pregavam. As crianças olhavam para sua perna,
como se a deusa negra tivesse lhe tocado pessoalmente, seus sorrisos a
incomodavam, mas não os odiava. Achava patética a ideia de morrer pelos deuses.
Agora sua irmã estava ali desejando fazer o que ela repudiava.
Nicte Ha percebeu sua dor e a abraçou.
– Não fique triste Nami, não há motivo para isso.
Encontraremo-nos novamente em outra vida, disso tenho certeza. – Itzanami sabia
que quando a irmã lhe chamava de Nami, era a forma carinhosa que escolhia para
lhe chamar a atenção, ou pior, quando tinha dó dela.
– É que eu não queria perdê-la. Não queria que
fosse você a escolhida, queria passar minha vida ao seu lado.
– Eu também queria Nami, mas você sabe que eu
sempre me preparei para isso e agora é escolha dos deuses. Eu estou pronta e
você também deveria estar. Preciso de você lá, preciso que seja forte por mim. Quero
que você sinta minha graça dissipar-se pelas águas do grande rio e meu corpo
seguir até as grandes corredeiras. Além disso, preciso de alguém para cuidar de
Tallis, já que não temos mais ninguém.
– Tallis não precisa de cuidados, ele é um caçador.
– Não falo deste tipo de cuidado.
Ainda abraçada, a irmã Itzanami enxugou suas
lágrimas e tentou sorrir sem que as emoções a inundassem novamente.
– Agora Nami, deixe-me ver suas roupas. – Quanto
às roupas estava tudo perfeito, ela sabia. As oferendas vestiam-se de negro,
representavam o outro lado da deusa, a destruição, mas a destruição necessária
para a criação. Aqueles que participavam do ritual vestiam-se de azul, a cor da
serenidade, e as pessoas próximas ao sacrifício, como ela, vestiam-se de branco,
a cor da entrega. Mostrou as roupas brancas e a máscara de porcelana.
– Vista-as para mim.
Itzanami fez de bom grado, lentamente, pegando uma,
depois outra. Desajeitava-se e deixava uma ou outra cair, ganhando segundos
preciosos, como se aquela permuta fosse afastar o inadiável.
– Está linda. Será a última roupa que irei ver você
vestindo.
Lágrimas desceram e ela virou o rosto para o lado,
até mesmo quando a irmã beijou sua testa e sorriu, ignorando sua dor. O gosto
salgado deixava pegadas em sua boca.
– É uma pena que você esteja entre outras pessoas e
talvez não a reconheça, mas tome isto – retirou um lenço branco e prendeu os
cabelos castanhos da irmã formando um coque alto.
– Pronto. Agora saberei que é você, Nami.
Itzanami novamente a abraçou e não temeu ser tola
ao dizer:
– Não vá irmã! Deixe este sacrifício para outra
pessoa. Eu te amo muito, não quero que você morra. Isso é apenas uma idiotice.
Nicte Ha não perdeu a serenidade, mas seu tom de
voz foi mais incisivo e firme.
– Nami, eu escolhi isto. Entre nós, os viajantes, somente
aqueles que têm a fé inabalável podem um dia estar juntos da grande deusa. Você
deveria ter mais fé. O sacrifício de retenção é a chance que eu tenho de ir
para uma próxima vida melhor ou, quem sabe, estar nos braços da grande deusa
Sedna. Você sabe muito bem que nada nesse mundo morre em definitivo. Apenas há
um ciclo, nascimento e morte são partes naturais dele. Sei que se estivesse no
seu lugar sentiria sua ausência, mas respeitaria sua escolha e seria feliz por
você, e é isto que desejo. Você e Tallis são as coisas mais preciosas que deixo
para trás, mas tenho que seguir o caminho que escolhi.
Argumentos
não vão calar o coração dela – pensou. – Está bem, Nicte Há. Não chorarei mais.
Vou tentar entender.
– Isso, minha linda Nami. E aprenda com esta
experiência, honre-me com sua felicidade. Agora tenho que ir me preparar.
– Só mais uma coisa, Nicte Ha. – Ela parou,
esperando ouvir outra tolice de Nami, mas se condoeu quando a pergunta veio:
– Vai doer? – Nicte Ha esforçou-se para sorrir. Aquela
encenação era um sol pela manhã – Itzanami tentou capturar todos os detalhes
daquele momento, mas era a visão que teria mais tarde que carregaria em todos
os seus sonhos, por todos os seus anos. Não sabia disso, mas logo saberia.
– O grande mestre Linus é habilidoso com a adaga,
não deixará que doa mais que o necessário. Mas é preciso um pouco de dor, para
que eu possa estar consciente e sentir minha graça partindo para outra vida.
Quando Nicte Ha ia sair, a porta se abriu e um
jovem grande, forte, com cabelos curtos, lisos e negros como os duros carvões
produzidos em Tergamônia entrou.
– Nicte Ha, você ainda está aqui?
– Vim ver nossa irmã e você antes da
cerimônia.
– Que bom, queria despedir-me de você, não sabia se
teria autorização para fazer isso mais tarde.
– Tallis, você é meu escudo, meu norte, e sei que seguirá
defendendo os viajantes. Seu trabalho é mais sacrificante que mil sacrifícios
de retenção.
Como ser
um caçador poderia ser pior que ser sacrificado? Está certo que a vida dele é de privações e treinamento, ele faz coisas
que os outros viajantes não poderiam jamais fazer, sob pena de serem
excomungados, mas mesmo assim, nada se compara ao que Nicte Ha fará. Talvez eu
nunca venha a ser uma viajante. Os dois, lado a lado, parecem se entender tão
bem. Sou um filhote albino perto deles.
Tallis olhou para ela com a mesma expressão da irmã
– Abra o coração para a profundidade de nossa fé, e
então irá amadurecer e entender.
Se
responder serei censurada. Melhor não.
O irmão
voltou-se para a mais velha e disse:
– Nicte, eu estarei lá ao seu lado. Linus me disse
que eu conduzirei você até a barca e a entregarei para ele.
– Que bom, Tallis. Isso é uma grande honra. São
raros os caçadores que são honrados assim, e para mim será muito importante que
me guie.
Nicte Ha abraçou forte o irmão e seus lábios tocaram
levemente os lábios dele. Enquanto o abraçava, sussurrou em seu ouvido:
– Cuide dela.
– Vou cuidar – ele respondeu.
– Agora tenho que ir, e espero que todos se
preparem.
Nicte Ha saiu pela porta e Itzanami não conseguia dizer
mais nada. Era como se a saída dela houvesse furtado suas palavras, mas havia
levado algo mais profundo, era aquela magnitude de presença. Deixou um vácuo, o
vazio pressionou os dois na sala e Tallis, olhando ansioso para a porta, apenas
disse:
– Temos que nos apressar.
Itzanami só havia visto um sacrifício
de retenção em toda sua vida. Embora ele somente ocorresse de sete em sete
anos, houve um três anos atrás. Ela não sabia bem o porquê, ninguém falava. Um
jovem de vinte e poucos anos, vindo de outra aldeia, fora sacrificado.
Seus olhos percorreram todo o campo, e somente o
que via era beleza – lamparinas, lampiões e candeias iluminavam o local, a
magia pulava de um para o outro como uma serpente dando o bote. Havia música de
harpa, pessoas cantavam cânticos antigos. As luzes mesclavam cores entre branco,
azul, amarelo e laranja. Muitas flores tinham um perfume que tocava a todos. Do
lado direito do campo, estava a tribuna dos anciões – todos de azul, alguns com
máscaras, outros não. Do lado esquerdo, a tribuna dos amados, aqueles que
tinham um vínculo afetivo com o sacrifício – estavam todos com máscara de
cerâmica. No círculo central estava Tallis, mais à frente o caminho que levaria
até a balsa, onde Nicte Ha seria levada até o grande rio para ser sacrificada. Lá
na balsa ela faria a oração da oferenda, concentraria suas lembranças, sonhos e
desejos em uma magia pura e olharia nos olhos de Linus. Ele alcançaria seu
coração com a adaga e se o sacrifício fosse grandioso, uma áurea branca sairia
dela e seu corpo seria deitado no rio, onde a água purificaria o resto. Sua
alma viajaria através da água para uma outra vida ou para os braços da deusa. Isso
era ensinado entre os viajantes.
Como
saber se isso é verdade? Só resta acreditar. Nicte Ha e Tallis não têm dúvidas,
mas eu tenho, e minhas dúvidas chegam a envergonhá-los.
A festa em si era linda. A única coisa que tirava a
beleza do espetáculo era o tempo nublado, cheio de nuvens baixas e pesadas. Nenhuma
estrela, o resto parecia um festival de colheita. Mas era sua irmã a oferenda – pensou.
Itzanami caminhou para a tribuna dos amados. Sua
irmã chegou minutos depois, e ela não pôde deixar de fazer outra comparação. A diferença entre nós é colossal! Nicte Ha
é cheia de desenvoltura, beleza e um carisma magnético que atrai a todos. Realmente
não há ninguém melhor em toda sua cidade para o sacrifício, nem mesmo em toda
Ifíanor. Eu sou a manca.
Tudo começou naturalmente. Antes do sacrifício, a
irmã tinha que satisfazer alguns requisitos. O primeiro era a dança – somente
ela dançaria sob o ritmo forte do coro de várias vozes, que anunciavam a sua
chegada. As harpas silenciaram-se e ela postou-se de joelhos para o centro como
se pedisse autorização. Tallis olhou-a e balançou a cabeça. Ela estava
autorizada a adentrar o centro, não havia mais apresentações para ninguém.
Nicte Ha apenas circulava Tallis, que estava com
sua armadura branca completa, até mesmo o escudo dos caçadores. As vozes também
se calaram e Nicte gritou para o alto:
– Sou Nicte Ha, sem raízes na alma, viajante entre
as vidas, e hoje me despedirei da minha casca e desejo que a Grande Deusa me
receba em seu ventre. Eu sou uma viajante.
As vozes gritaram três vezes o nome de Nicte Ha e
três vezes a frase “Nós somos viajantes”.
Logo começou uma canção triste em tom baixo, que
aos poucos ia aumentando, enquanto Nicte Ha dançava. Itzanami chorava
compulsivamente. Não queria olhar, desejava impedir o sacrifício.
Tallis lançou duas pequenas bolas de fogo na irmã,
que as manipulava no ar. O fogo no sacrifício era o rompimento com o medo. Ela
usava as chamas das mais variadas formas – circulavam-na, desciam e subiam, ora
como bolas, ora como línguas de fogo, e seu corpo dançava entre elas. Era
sensual ver a atuação dela. O coro de vozes ecoava mais alto, até que o segundo
momento do sacrifício chegou – sua irmã queimou suas roupas, despojando-se das
últimas coisas deste mundo. Nicte Ha era perfeita, não havia nenhuma marca em
seu corpo torneado e sinuoso, uma armadilha para qualquer homem.
Não havia vergonha nos olhos da irmã. Ela apenas
desfilou nua diante da tribuna dos anciões e dos amados, até que seu irmão trouxe
a mortalha negra e a cobriu. Agora ele deveria levá-la para o caminho. Os olhos
das duas se cruzaram e Nicte Ha abriu um sorriso para irmã e enviou-lhe um
beijo. Nami, com muito esforço, retribuiu.
Então Nicte Ha pronunciou algumas palavras e uma
pequena luz saiu de seus olhos. Era o feitiço de retenção – ele determinava se
a força da vontade da pessoa para o sacrifício era verdadeira e suficiente, e
se olhos dela brilhassem como fogo, igual aos de Nicte Ha neste instante, então
ela estava preparada, e suas ações agora eram voltadas apenas para o
sacrifício. Era como uma magia poderosa de auto sugestão.
Todos observavam tão atentos, que muitos não
escutaram uma risada que ecoou por todo o campo vinda do alto. Para se fazer
notar, a risada cavernosa ficou mais alta e incisiva. Era como se mil homens
rissem ao mesmo tempo.
Então tudo mudou.
As pessoas pararam, incrédulas. Olhavam umas para
as outras, tentando descobrir de onde vinha aquela risada que ecoava. A maioria
da Tribuna se mexeu nervosa, Nami retirou sua máscara, tentando achar o ser que
emitia aquele som, mas foi Tallis quem primeiro identificou a origem. Vinha
acima das nuvens. Ele gritou:
– Corram, é um dragão.
Uma enorme labareda de fogo, como uma cascata
desceu dos céus e atingiu Linus, que estava próximo à barca esperando os dois. Ele
foi queimado no mesmo instante. Tallis gritou para que Nicte Ha corresse, mas
ela parecia ainda estar em transe, sob efeito da magia que vinha dos cânticos e
sua própria magia de retenção. Ele havia se esquecido deste detalhe. Outra
labareda de fogo atingiu dois anciões que corriam e então Itzanami pôde ver o
ser mais majestoso e sombrio que sua imaginação poderia conceber – um dragão
negro gigantesco, com quase vinte metros de altura, olhos amedrontadores,
grandes garras e o que mais a incomodou, um sorriso pérfido e venenoso. O
dragão queimou mais algumas pessoas.
Tallis fez seu escudo brilhar com magia – criou uma
esfera transparente e reluzente ao redor de sua armadura e escudo e arremessou
sua espada em direção ao dragão. A magia transformou a espada em um lança, mas
o dragão a rechaçou e urrou para ele, despejando outra labareda de fogo. O
escudo brilhou ainda mais. O ataque do dragão não lhe afetou, a espada voltou
para suas mãos e Tallis agora corria em direção à fera, queria acertá-la. Ele
foi treinado para isso. Caçar, caçar
qualquer coisa, qualquer ser. Os caçadores matavam e por isso não eram queridos
entre os viajantes, mas eram o seu braço direito, seu escudo e sua fortaleza em
tempos difíceis. Queria ter o poder
de Tallis, mas sou fraca, não consigo nem correr. A bravura dele é o oposto do
que sinto, mas mesmo assim é fascinante observá-lo.
O dragão ameaçou alçar voo, mas recuou, pois a
espada de Tallis na forma de lança mais uma vez tentava atingi-lo e mais uma
vez falhava. A criatura arredou as duas patas traseiras para trás e prostrou-se
para frente. Queimaria tudo à sua frente, inclusive o garoto que corria em sua
direção. Itzanami duvidava que a magia em torno do escudo aguentaria o fogo
desta vez, mas ela resistiu. Seu irmão saltou sobre a fera a fim de lhe crava a
lança, mas com um movimento rápido de sua calda, ele arremessou Tallis longe, e
desta vez alçou voo.
Itzanami desfez-se de sua paralisia e correu em
direção ao irmão para auxiliá-lo. Sabia magias de cura. A criatura agora não
era visível, estava em meio às nuvens. Quando chegou até Tallis, este já estava
restabelecido, sua magia de proteção o ajudou.
– Nami, o que faz aqui? Onde está o dragão?
– Voou para as nuvens, deve ter fugido.
– Ele não fugiu, dragões não gostam de ser
desafiados. Leve os outros para longe daqui e busque os outros caçadores.
Tallis levantou-se, preparou mais uma vez seu
escudo e aguardou. Itzanami gesticulou para os poucos que ali estavam para
correrem para as vilas e chamarem os outros caçadores. Procurou sua irmã até
que a viu indo em direção à balsa. Era o transe do feitiço de retenção. Teria
que ir até ela, mas novamente ouviu a mesma risada. O tom maléfico com que ela
foi pronunciada causou enjoo em Itzanami, mas o que ela viu a marcou por todos
os dias em que ainda viveria. O grande dragão desceu e pousou à frente da irmã
e a balsa ficou atrás dele. A fera olhou para Tallis, sorriu e incinerou Nicte
Ha. Quando ele acabou, somente cinzas sobraram e espalharam-se rapidamente ao
vento com o bater de suas asas. Ele foi embora deixando ecoar aquela gargalhada
que causaria pesadelos em Itzanami.
Nenhum comentário:
Postar um comentário