CAPÍTULO 3
LEON E SARAH
Abak era a segunda maior cidade de
Damatia, talvez a maior cidade portuária de toda Ifíanor. Situava-se no
estreito de Mardoll, sua localização fazia com que se tornasse no norte o ponto
de entrada para Damatia. Nenhum navio entrava no continente sem passar por Abak
– os recifes próximos à costa impediam que qualquer embarcação atracasse no
continente, restando como opções a passagem pelo estreito, ou contornar metade
do continente. Mesmo assim o clima não aconselhava tal viagem.
A cidade dividia-se em duas partes,
a ala oeste e a ala leste, uma em cada lado do estreito, ambas conectadas pelo
grande porto que se erguia por sobre toda a extensão de águas. Somente dois
navios, no máximo, podiam entrar no estreito por vez, pois não havia largura
suficiente para outros sem que se comprometesse a segurança. Seus comandantes
deviam conhecer bem os caminhos do estreito de Mardoll, pois os recifes eram
mortais com viajantes incautos.
Qualquer tentativa de invasão ao
porto era facilmente repelida – entre suas defesas havia canhões e pequenas
embarcações explosivas, que se aproximavam dos invasores apenas para destruir e
incendiar os cascos de seus navios, e um navio que tentasse entrar a força pelo
estreito seria atacado pelo farol que servia de guia e defesa para o mesmo.
Após a cidade, nas áreas leste e oeste, havia os
portos – quilômetros e mais quilômetros deles – e depois disso o continente. Do
lado oeste dos portos ficavam as embarcações de defesa de Abak e do lado leste
o comércio. Havia ainda o bairro dos tributantes, a região de comércio, o
mirante, entre outros locais de destaque. A cidade crescia rapidamente de
dentro para fora, expandindo sua periferia.
Abak abrigava mais de duzentas mil
pessoas. Todas as novidades de artesanato, ciências, armas e invenções que
chegavam ou saiam do continente, passavam por lá. Ao norte da cidade havia um
pequeno arquipélago e milhares de milhas à frente se estendia o continente de
Pallas.
Leon acordou cedo, gostava de
caminhar por boa parte da ala oeste de Abak disfarçado como um cidadão comum –
uma barba postiça, uma bengala, roupas maltrapilhas. Fazia parte de seu ofício
entender a rotina das pessoas, observar e avaliar potenciais ameaças. Nada
passava despercebido aos seus olhos atentos – não somente viam, eles percebiam
quando tumultos estavam para ocorrer, quando reivindicações seriam organizadas,
entre outros problemas cotidianos. Ele era o capitão da guarda de Abak, o
segundo em comando na cidade. Somente o prefeito Sorog era superior a ele em
ofício.
Em suas caminhadas conversava com
todos, até mesmo os mais indesejáveis, ou os responsáveis pelo mercado negro. Tudo
funcionava porque havia ordem e leis, principalmente não escritas. Havia
concessão a alguns, feita de forma controlada para que nada ganhasse dimensões
alarmantes. Em sua mente, era o bem e o mal funcionando de forma organizada sob
seu comando. Somente os poucos que
entendem esta lógica permanecem tanto tempo no cargo, principalmente sendo o
cargo eletivo e temporário – pensava.
Existia uma função que se sobressaía
às demais – a de avaliador-mor. durante a parte da manhã e no final da noite
ele fazia parte do burocrático, porém vital, trabalho de avaliação dos navios
que entravam no estreito. Qualquer embarcação que fosse, somente poderia entrar
se tivesse sua autorização ou de algum outro avaliador. Era uma função tão importante,
que somente poderia ocupá-la quem não tivesse vínculos afetivos com ninguém –
não se podia ter mãe, pai, filhos, esposa e irmãos, pois a chance de serem
sequestrados era grande, por um simples motivo.
O avaliador sempre ia em uma
embarcação de pequeno porte até o navio que o aguardava antes do estreito,
adentrava a embarcação e a vistoriava em todos os compartimentos, a fim de
verificar se trazia ou não exércitos inimigos ou qualquer outra coisa que
pudesse fazer mal a Abak ou ao país. Depois voltava e sozinho passava pelo olho
da ilusão – era um círculo mágico no chão do andar de baixo da intendência dos
avaliadores. Ele verificava se a pessoa ali estava sendo vítima de alguma magia
ou se realmente era a pessoa que foi até as embarcações.
Existiam alguns magos capazes de
mudar sua aparência externa para se parecem com outras pessoas e assim permitir
a entrada de tropas inimigas, mas o olho da ilusão desfazia qualquer magia, até
mesmo as de controle mental. Quando o avaliador acabava de passar pelo olho,
ele então sinalizava para o mestre do farol com uma luz amarela, que
significava passagem permitida, ou uma luz vermelha, que indicava passagem
negada. O grande farol do lado leste sinalizava para a embarcação, que
aguardava a luz dada pelo avaliador para saber se ela poderia ou não entrar. Se
a decisão fosse contestada, a embarcação deveria esperar mais um dia e aguardar
outro avaliador, mas elas nunca esperavam, pois seus comandantes tinham medo de
serem abatidos.
Tudo era feito através de magia. Ninguém,
a não ser os operadores do farol, conseguia ver a luz escolhida. Além disso, o
próprio farol era um extensão do olho, ele também desfazia qualquer magia
utilizada que chegasse a alguns quilômetros da entrada do estreito, além de ter
outras formas de defesa.
Leon observava a todos no grande
mercado. Em breve deveria ir para a intendência, mas preferiu ficar mais um
pouco e escutar as notícias vindas dos outros continentes. Escutou sobre
pequenas crises, falta de sal em alguns lugares, grandes colheitas de trigo
sendo vendidas por preços baixos, rumores de desavenças entre humanos e elfos e
entre pessoas comuns e magos, mas nada que fugisse à rotina dos mercadores. Muitos
até estavam empolgados com a possibilidade de grandes vendas na capital de
Vescra, a cidade de Vanir. O país estava crescendo novamente, e as rotas de
mercado voltavam às suas portas.
Um assunto era recorrente – dizia respeito
a uma invenção, algo que se movia sobre pequenas estradas de ferro sem magia,
apenas queimando carvão, e que tinha um quilômetro de comprimento. Diziam que
revolucionaria os mercados do país, pois levaria grandes cargas rapidamente por
todo continente. Chamavam-no de trem ou locomotiva, mas Leon não acreditava
nestas coisas. Já ouvira falar do Rei de Vescra, diziam que tinha ambição e
grande visão, mas investir recursos numa
ideia assim parece algo inconcebível que beira a loucura, exceto por um fato –
parece que quem está arquitetando esta coisa é Gael, e ele não pode ser
subestimado. Já fez maravilhas por Damatia e pela capital Damas, mas esta não é
uma preocupação minha – pensou.
Evitou a praça central e caminhou
para o norte da cidade. Precisava passar em mais um lugar antes de chegar à
intendência – havia uma pessoa a ser visitada, alguém que não podia ser visto
em sua companhia. Desceu algumas escadas e entrou em um beco, abriu uma porta
ao fundo e tocou três vezes uma outra porta. Um homem gordo de barba mal feita
o atendeu, olhou para ele e disse – O senhor já é aguardado, ela o espera na
biblioteca.
A biblioteca possuía dois andares,
com estantes e mais estantes de livros. Muito bem iluminada, era um contraste
com a pequena sala que a precedia. Havia mesas por todo o centro, mas apenas uma
cadeira ocupada. Não era um local frequentado pelo público em geral, aliás,
poucos sabiam da existência do lugar.
A mulher não demonstrou que notou
sua presença e continuou a ler atentamente suas páginas. Ele não interrompeu
sua leitura. Ela era uma das poucas pessoas em Abak, talvez a única, que ele
podia afirmar que tinha um misto de respeito com temor.
Marisa leu mais um pouco, encostou o
livro, observou-o, e então puxou uma cadeira ao seu lado e rompeu aquele
silêncio incomodo.
– Sente-se Leon, mas antes pegue uma
bebida para nós.
Ele não recusou. Pegou uma garrafa
em uma mesa próxima, serviu dois copos e sentou-se ao lado dela.
Tudo em Marisa eram insinuação e
armadilha – suas roupas, seu cabelo e principalmente seus olhos negros – mas quando
falava, era como se promessas fossem cumpridas. Sua voz era pausada, doce e
havia comando.
– Em que posso lhe ser útil, Leon?
– Seu último carregamento. – Ele pronunciou
calmamente as palavras. Não queria causar tensão e não tinha medo, mas quando
se tratava de Marisa toda cautela era necessária.
– Então é isso! Algumas garrafas a
mais de vinho e hidromel. Não posso contabilizar tudo que trago, os impostos
são altos e não fica margem para lucro. Até os tributantes sabem disso.
Ele sorriu e disse:
– Todos sabemos que sempre omite
seus números, mas não estou falando de bebidas, estou falando da outra carga.
– Bom, aquilo... – ela riu em resposta
– aquilo foi só um presentinho para alguns nobres.
– Marisa, você sabe como as regras
são rígidas a respeito de escravos. Muitas pessoas são contra. Existem
murmúrios vindos de Sarim e Vescra sobre abolição, as pessoas estão ficando
intolerantes.
– Eu sei, mas não vai se repetir. É
difícil agradar a todos. – Ela levantou-se, bebeu um último gole e soltou seus
longos cabelos negros. Caminhou para próximo de Leon, deslizou seus dedos pelos
ombros dele, percorrendo seus braços fortes e chegando ao peito, e sussurrou em
seu ouvido. Ele tremeu ligeiramente.
– Deixe-me compensá-lo por este
pequeno deslize. – O cheiro de seu
perfume com a proximidade de seu corpo testavam o autocontrole de Leon, que se
preocupou em sorver mais um gole.
– Leon, vou contar-lhe um segredo e
você avalia se meu pequeno deslize foi perdoado.
– Prossiga.
A mulher o abraçou mais forte e
sentou-se em seu colo. A pele morena de seu rosto o enlouquecia, desejava
transar com ela ali mesmo, mas precisava saber o que Marisa sabia. Ela deslizou
a mão para a calça do homem e sua língua entrou na orelha dele, tão insinuante
como o restante de si. Foi por pouco, mas ele a deteve. Queria ouvi-la, não ser
manipulado.
– Prossiga – ele insistiu.
– Dizem que uma cidade ao norte –
uma dessas ilhas, talvez seja Sisam – foi atacada por orcs.
– Os orcs foram quase extintos há
mais de duzentos anos durante as guerras seculares. Os que sobraram foram
exilados para Agonia, ou fugiram e vivem escondidos.
– Você ainda acredita nestas
histórias Leon.
Ele não soube precisar se ela perguntava ou
afirmava.
– Mas isto não é o que importa.
– Então diga o que realmente importa.
– Sussurram também que Sorog sabe
disto e que está tramando algo grande, mas que você e sua popularidade são os
únicos obstáculos. Ele pretende desmoralizá-lo na próxima eleição, para que
possa colocar no seu cargo alguém que ele controle.
– O que ele está tramando?
– Ainda não sei, Leon, mas tem muito
ouro envolvido. Dois baús carregados chegaram há duas noites na prefeitura. Ninguém
sabe de onde veio ou para onde foi.
Se a notícia tivesse vindo de
qualquer outra pessoa, Leon teria dado pouca importância, pois sabia que
pequenas tramas faziam parte da cidade. Mas Marisa não mentia nestes assuntos. Ao
contrário, ela era confiável, dependia dele e ele dela. Foram criados juntos,
órfãos, e passaram por dificuldades semelhantes, mas mesmo que seus caminhos
fossem diferentes, havia confiança, e aquilo que foi dito era algo a se
preocupar.
Ele levantou, afastando-a. Ela
pareceu não sentir a rejeição.
– Depois continuamos este nosso
encontro.
– Assim espero. É perigoso deixar
uma mulher como eu com tanto desejo no corpo, preciso ser recompensada.
– Você será, mas tenho que ir.
Quando ia sair pela porta, parou e disse
a ela:
– Marisa, você ainda me deve um
favor.
Um princípio de sorriso surgiu em
seus lábios, mas desapareceu.
– Não se preocupe Leon.
O posto de subcomandante da guarda
era de Sarah – cabelos castanhos bem presos, rosto arredondado e pele clara,
corpo insinuante e um lindo sorriso, ela exalava inocência, mas era astuta, a
melhor espiã que Leon já teve. As pessoas simplesmente confiavam em Sarah. Para
Leon, que sempre teve como fraqueza as mulheres, ver Marisa e depois Sarah era
um desafio, mas ele sabia que todo líder tinha que ter autocontrole e não
deixar transparecer o desejo que lhe vinha ao corpo e à mente. Diferente de
Marisa, Sarah era comprometimento e profissionalismo – não se aventurava, não
tinha um comportamento inadequado. Ela cobiçava o posto de Leon e ele sabia
disto, mas somente concorreria quando Leon cedesse à vaga. Ela o respeitava e
admirava. Havia aprendido tudo o que sabia com ele, somente havia chegado ao
seu cargo por causa dele.
Depois de se trocar em casa e
colocar o fardamento azul marinho da guarda de Abak, Leon agora se apresentava
como o comandante da guarda. Rosto firme, – embora tivesse o cabelo bem aparado
como um militar, a parte de cima apresentava cabelos lisos e rebeldes – já não
era tão jovem, mas seu porte físico era superior à média das pessoas. Olhos
castanhos rasgados, e dentes firmes e brancos, inspirava a todos seriedade e
obediência.
Sarah o esperava a porta.
– Leon, Sorog está aí dentro o
esperando.
Então as
coisas acontecerão mais rápido do que o esperado – pensou.
– Entre comigo, Sarah.
Eles adentraram a intendência. O
salão principal era grande e repleto de quadros de outros componentes da guarda
que morreram como heróis ali em Abak ou em outro lugar. Dezenas de memorandos
ou de folhetos com recompensas sobre foragidos dividiam as paredes. Havia um
homem corcunda, aparentando uns sessenta anos, que demonstrava um certo
interesse reservado, olhando tudo aquilo. Mas para Leon, ele estava apenas
arrumando uma forma de passar o tempo.
Embora Sorog
seja velho, é vaidoso e articulado apenas no falar – pensou.
– Bom dia, senhor Leon.
– Bom dia, senhor prefeito.
– Não sabia que você era dado a
atrasos, sua subcomandante já estava aqui bem antes do senhor. Logo ocupará seu
cargo.
Então o
jogo dele já começou.
– Sarah é muito eficiente, por este
motivo a promovi a subcomandante. Quanto a mim, não tenho horário para chegar. Meu
trabalho não é só aqui, mas em toda a cidade. Zelo pela segurança de todos,
assim como do senhor.
Se Sorog ficou incomodado com a
resposta, não demonstrou, mas continuou de costas para Leon, como se o
ignorasse fisicamente.
– Então, já que anda por toda a
cidade, poderia me atualizar de assuntos novos que tanto prendem sua atenção.
– Não há nada com o que o senhor
deva se preocupar. O prefeito de nossa cidade tem assuntos mais importantes a
cuidar do que meras conversas de mercadores. – Leon soube, no instante em que
pronunciou as palavras, que tinha ido longe demais. A expressão no rosto de
Sarah apenas confirmou isso.
– Não acho, comandante Leon, que o
senhor deve dizer o que eu devo ou não saber. Tudo que interessa a esta cidade
me interessa diretamente e se o Senhor acha que não há nada de preocupante, ou
é mais obtuso e relapso que eu imaginava ou é um desinformado, e qualquer um
dos defeitos não é condizente com um comandante. – Ao dizer isso, Sorog olhou
diretamente nos olhos de Leon para quantificar os efeitos das suas
palavras.
Então é a
este ponto que ele queria chegar – pensou Leon.
– Se o senhor está mencionando os
boatos de um ataque a uma das vilas pertencentes ao nosso arquipélago... –
Sorog não deixou ele terminar.
– Até que não é obtuso nem relapso,
Leon – Sorog fez uma pausa antes de continuar – você realmente só é
desinformado.
Leon sentiu o baque, mas não demonstrou. É hora de recuar no jogo dele.
– Enquanto dizem que orcs atacaram
uma das vilas, continuo achando que é boato. Orcs, pelo que todos dizem, foram
extintos.
– Não sei se foram orcs, Leon. Ocorre
que a ilha de Sisam foi atacada e quero que você vá até lá confirmar. Não
podemos ficar aqui esperando um ataque também, de quem quer que seja.
– Nossa cidade é bem protegida, mas
levarei alguns homens para verificar a situação, senhor prefeito.
– Quem sabe assim, Leon, você fica
mais informado. Mas não se atrase muito. Agora tenho que ir, pois, como você
mesmo disse, tenho assuntos importantes para resolver. – O homem caminhou
vitorioso para a porta de entrada e seus passos confiantes o desarmaram perante
as próximas palavras de Leon.
– Despachar baús carregados de ouro
realmente é um assunto importante, senhor Prefeito.
Sorog tremeu as mãos, os braços e a
boca. Metade do seu rosto paralisou, enquanto a outra parte tremia, e ele virou-se
lentamente na direção de Leon, que viu olhos salpicando de raiva. Mas havia
mais – havia ódio, que rapidamente passou e ele se refez na mesma velocidade
com que teve o ataque de fúria.
– Deve ter cuidado com as palavras e
acusações, senhor Leon. Às vezes palavras como estas não são bem-vindas, mas
como sou um homem complacente, ignorarei este comentário infundado.
– Até que não estou tão
desatualizado, senhor Prefeito. – Sorog não respondeu, apenas se virou e saiu
pela porta. Sarah beliscou Leon quando o homem saiu.
– O que pensa que está fazendo, Leon,
comprando briga com o prefeito deste jeito?
– Não se incomode com isto agora,
Sarah. Preciso que peça a David que prepare uma fragata e uma corveta, mais
quarenta homens, dois magos e um clérigo. Vamos para Sisam.
– Sim, senhor. Mais alguma coisa?
– Enquanto estivermos fora, nenhum
navio entra em Abak.
– Mas, senhor, isso vai gerar muito caos e
insatisfação.
– Não se preocupe, Sarah. São ordens
do prefeito. – Leon sorriu e Sarah evitou dizer mais alguma coisa enquanto
saia.
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