CAPÍTULO 1
ALFRIS E SELENE
Aag olhava os céus e durante alguns segundos, a
visão das três luas de Ifíanor pareceu-lhe distante e melancólica, seus olhos
lacrimejaram por instantes e ele não soube dizer o porquê, apenas sentia uma
inquietude tomar o seu corpo como se sacudisse sua alma e mantivesse o restante
inerte. Há poucos minutos estava em casa com seu irmão mais velho Alfris e
havia deixado a filha pequena Lisa com sua esposa Lessa. Agora ambos chegavam
perto dos portões do castelo de Dankar, onde assumiria o seu posto na muralha. Seu
irmão era o chefe da guarda noturna e das defesas do lugar, foi ele quem
indicou Aag para trabalhar lá depois que a pequena Lisa nasceu. Rapidamente era
um dos melhores guerreiros e havia descoberto ser capaz de manipular um ou
outro tipo de magia. – Está no
sangue – era o que dizia o irmão.
Depois que Alfris se apresentou, os grandes portões
de madeira se abriram. A muralha exterior era de rocha pura, formando um grande
arco de aproximadamente trezentos metros, encontrando-se com a montanha nas
duas extremidades. Acima dos portões uma ponte levava até o outro arco, este
invertido – suas pontas voltadas para o pátio principal eram como duas
ferraduras viradas uma para a outra, e a menor propiciava aos arqueiros uma boa
vantagem sobre quem invadisse, sem mencionar o fato de que a ponte que unia os
dois arcos podia ser derrubada por um sistema hidráulico. Atrás do segundo arco
estava a fortaleza que era cercada por uma grande montanha, impenetrável devido
às suas rochas cortantes e caminhos cheios de armadilhas naturais. O castelo de
Dankar pertencente ao reino de Vescra tinha um único objetivo: guardar um dos
seis talismãs de Ifíanor, protegido pela feiticeira Selene.
O castelo,
em contraste com as grandes muralhas que possuía, era pequeno e encontrava-se
na mesma altura destas. Um outro pátio interno após a segunda muralha conduzia
ou à casa de armas à esquerda ou ao grande silo que servia para armazenar
suprimentos para todos ali à direita. Havia uma ponte que saía do segundo arco
até os portões da fortaleza. Se um invasor passasse pelos portões do castelo,
seguiria por um corredor, atrás do qual ficava a câmara dos magos e logo após o
salão do talismã onde Selene descansava.
Aag não sabia o porquê, mas se lembrou destes
detalhes quando adentrou os portões. Lembrou-se também da passagem secreta
rente ao muro esquerdo da segunda muralha, onde havia um mecanismo que abria
uma pequena cavidade que era fechada por dentro. O caminho conduzia por dentro
da muralha até um pequeno aposento atrás do salão do talismã. Lá havia um outro
caminho dentro da montanha até a floresta perto do vilarejo mais próximo, onde
já haviam guardas esperando no caso da feiticeira precisar fugir.
Somente ele, seu irmão, o chefe da guarda diurna e
a feiticeira sabiam desta passagem, nem mesmo os seis magos tinham este
conhecimento.
Selene era uma das magas mais poderosas de Ifíanor,
e havia recebido a missão de proteger o talismã pelo próprio Círdan, o
presidente do Alto Conselho das raças. A
verdade é que Selene é a maior defesa do castelo, nós somos contratempos –
pensou Aag.
Alfris sempre o protegeu e temia que se os portões
fossem tomados Aag sucumbisse, portanto havia lhe ensinado uma forma de escapar
atráves da passagem dentro da muralha. Aag sempre soube das intenções do irmão.
Mesmo este sendo o mais natural possível, o disfarce das palavras não o enganaram,
mas ele nada disse. Segundo o que dizia Alfris, os tempos eram sombrios desde o
momento em que os centauros fizeram o inconcebível. Todos os reinos estavam em
alerta, e Dankar não podia ser diferente. Dankar era quase um Estado autônomo
em relação a Vescra, as tensões políticas fervilhavam e qualquer desculpa
serviria para uma revolta ou para mais opressão.
– O comando
da guarda está sendo repassado a Alfris, o comandante noturno – gritou o
capitão do turno matutino. Parece uma
sentença ao invés de um encargo. Os homens que estavam em formação foram
dispensados e os recém chegados ocuparam seus lugares.
– Está tudo tranquilo, mais uma noite calma meu
irmão – disse Alfris.
– Esta quietude, porém, me aflige.
– Você com seus temores e crendices... Relaxe,
homem, e vista sua armadura.
Aag limitou-se a gesticular com o rosto.
Estranhamente a vontade de ver a família o assolou. Se pedir para sair Alfris não irá me perdoar, nem mesmo os homens que
comando. Acharão que sou um tolo e não estou preparado.
Alfris colocou o elmo e seus olhos tocaram
preocupados a face do irmão.
– Ei Aag, algo está o incomodando? Aag puxou
sutilmente o irmão pelo braço e afastou-o dos demais que se preparavam para
pegar seu turno.
– Alfris, estou com um pressentimento ruim hoje,
não consigo parar de pensar nas meninas.
– Não fique assim, justo hoje que tenho boas
notícias para você – Aag, com um olhar desinteressado, limitou-se a sacudir os
ombros. – Aag, a indicação que eu fiz à Feiticeira para que inicie seu
treinamento de mago no templo da Luz em Physhara foi aceita, ela concordou que
precisa de mais uns dois oficiais bem preparados aqui e você será um dos
escolhidos.
Aag não sabia como reagir, pois a aflição que o
inquietava, embora tivesse diminuído, ainda incomodava, mas se esforçou para
demonstrar alegria. O máximo que fez foi estampar um sorriso forçado e apático.
Se não consigo ficar longe de minha
família que está a poucos quilômetros daqui, imagine num centro de treinamento
seletivo e exigente com o templo da luz?
– Alfris, eu agradeço, mas não sei se estou à
altura disto, existem outros aqui mais bem preparados e que merecem mais do que
eu.
– Não seja modesto Aag sei que você é novo, tem
talento e coragem. Só precisa ser lapidado. E você é forte, está no nosso
sangue.
Novamente
aquela frase – pensou
Aag.
– Mas e as meninas, como ficarão?
– Já coloquei a feiticeira a par de sua situação. Ela
irá arrumar hospedagens dentro do castelo e dará a Lessa um cargo junto às
serviçais enquanto você estiver fora. Ela, inclusive, deseja muito conversar
contigo amanhã. Alfris o abraçou e Aag sorriu mais relaxado.
– Tem certeza de que não iremos dar trabalho? Lisa
ainda é uma criança.
– A feiticeira disse que não será nenhum incômodo e
eu estou fazendo o que acho melhor para o meu irmão, afinal você e as meninas
são a única família que tenho. Além disso, ela disse que já iria tomar esta
decisão, quer eu indicasse você ou não, reconhece que você tem talento e as
qualidades necessárias para o posto. Agora coloque um sorriso em seu rosto e se
apronte.
Enquanto Aag vestia o restante da armadura e se
armava, pensava nas palavras do irmão: “você
é forte, tem talento e coragem, está no sangue”. Quero tanto que estas palavras sejam verdades, mas que droga, hoje
definitivamente não dá, por quê? Por que esta aflição me consome aos poucos?
Olhou para o irmão que parecia invulnerável,
tamanha segurança e confiança, seu porte colossal e sua grande altura pareciam
transportar alguém inabalável e invencível. O efeito que Alfris causava nas
pessoas que o viam pela primeira vez era de temor, sua presença intimidava. Era
robusto e moreno, cabelos curtos, tinha cerca de uns cento e vinte quilos, nos
seus um metro e noventa, e o resultado disso tudo era uma feição forte e
decidida.
Aag, com seu corpo menor, parecia um vaso delicado
perto do irmão. Embora também fosse forte, seus traços eram muito parecidos. Talvez a ideia de ir para o templo não seja
ruim, talvez fique como ele. Neste momento um pensamento inquietante o
incomodou – isso nunca vai acontecer.
Foi o suficiente para que a aflição que antes o incomodava como pequenas
marteladas se tornasse mil sinos tocando de uma vez em sua mente. Tentou
concentrar-se e outro pensamento cortou sua mente – ao menos vai fazer algo especial. Era uma voz que não era sua,
durante toda a vida escutou vozes, pressentimentos que vez ou outra o
incomodavam, mas eram raros, eram sobre alguém que iria machucar, mudanças
climáticas, pessoas que teriam filhos... mas hoje aquilo estava exponenciado. Os
pressentimentos, a aflição, os sentimentos pareciam uma multidão de gritos de
alerta, ele sentia que algo ruim iria acontecer.
Em momento nenhum as vozes disseram, apenas
insinuaram, mas Aag morreria naquela noite.
***
Selene estava em transe havia alguns minutos. Era
costume fazer aquele ritual todos os dias. Seu corpo loiro estava nu, deitado
em torno de um círculo, e três sacerdotisas erguiam suas mãos formando um
triângulo fora do círculo. Elas estavam vestidas com trajes brancos e cantavam
cânticos, o ritmo das vozes crescia e pareciam se aprofundar como se estivessem
declarando algo profano. As três vozes seguiam como se fossem uma e não havia
mais nada na sala do ritual. Quanto mais forte a entonação dos cânticos ficava,
mais Selene se contorcia até que suas mãos começaram a brilhar e uma luz
irradiou, e como um raio atingiu as mãos da sacerdotisa que estava em pé atrás
dela, mas nada lhe causando. Por alguns segundos aquela luz azulada ficou
somente ali, até que se espalhou para as mãos das outras duas fechando o triângulo
e seus olhos brilharam, os cânticos cessaram, e Selene viu.
Ela viu a frente do castelo e a planície que descia
por uns cinco quilômetros até a floresta à esquerda e as grandes montanhas mais
além. Esta era mais uma vantagem para o castelo: qualquer inimigo que se
aproximasse era visto de longe. Ela não viu nenhum inimigo, mas havia algo lá e
ela sabia que não era algo bom.
Sentiu que o talismã, mesmo estando em seu salão,
queria lhe mostrar algo. Sabia dentro de si que ele queria lhe mostrar o futuro,
mas era como ver através de vidros grossos e opacos – viu uma chuva de fogo,
soldados mortos e quando seus olhos olharam para o salão do talismã este não
estava mais lá. Olhou para as montanhas e havia um homem e um dragão, e quando
tentou ver mais encontrou resistência. Atrás dos olhos verdes e conhecidos
daquele homem havia sombras, algo feito de maldade, e uma dor alucinante
percorreu cada centímetro de seu corpo. O homem a encarava, mas não era ele que
temia, era outra coisa, algo que a aguardava. Selene não conseguiu se manter no
transe, estava perdendo para a força mental de seu inimigo, aquilo não era
comum, mas estava acontecendo. Despertou rapidamente e gemeu de dor. Aquela
batalha ela perdeu, mas outra começava.
***
Alfris percorreu o topo de toda a muralha,
cumprimentando cada um dos cerca de oitenta soldados que ali estavam. Havia no
castelo um efetivo total duzentos guerreiros, mais a metade disto em prontidão,
e seis magos além da própria feiticeira. Todos sabiam que em caso de combate a
missão era defender a vida dela juntamente com o talismã.
Ao chegar na parte de cima dos portões, Aag o
acompanhava, era como um braço direito. Seus olhos vez ou outra divisavam o
horizonte à sua direita, mas ele não via nada de diferente, apenas sentia a
brisa que soprava ao longe vinda das montanhas. Parecia que nenhum mal se
avizinhava, embora ele sentisse que as trevas aos poucos deitariam seu manto
frio nas aragens de Vescra. Era mais um de seus pressentimentos, o mal às vezes
lhe cantava aos ouvidos e ele nada podia fazer. Lembrou-se das visões de guerra
que tivera durante um dos seus sonhos e como ficou preocupado. Após duas noites
sem sono havia procurado Selene, que quis saber mais, e ele lhe confiou que guerras
e mortes se aproximavam. E não era só isso, um pesadelo inconcebível partiria
de Vescra para o mundo. Ela jurou que não contaria nada a seu irmão, e lhe
pediu um favor:
– Aag, seu futuro é nebuloso para mim. Sei que suas
ações influenciarão Alfris e que um dia precisarei de toda sua coragem e força,
posso contar com você?
Aag estranhou à época que uma pessoa com os poderes
de Selene lhe pedisse ajuda, mas não negou.
– Feiticeira, só desejo servir-lhe bem e posso
falar o mesmo de meu irmão.
– Eu sei Aag, eu sei. O olhar dela naquela ocasião
pareceu distante e perdido, mas havia algo mais, havia tristeza que ela soube
mascarar.
Seu irmão foi conferir o silo e terminar outras
atribuições de seu cargo. O muro cobria metade de seu corpo. À sua direita a
alguns metros uma pequena torre de observação acomodava alguns arqueiros e à
esquerda a segunda torre possuía o sino que era tocado em caso de ataque.
Na quarta vez que Aag olhou apreensivo para a
frente do castelo, os homens ficaram incomodados. Henry, um dos guardas,
procurou-o oferecendo uma maçã.
– Quer uma?
– Não, obrigado Henry.
– Já que não quer, vou comê-la.
– Fique à vontade.
– O que o aflige?
– Deu para perceber?
– Eu e os demais, esta inquietação gera mais
inquietação.
– Não queria causar transtornos.
– Eu sei, mas me diga o que é.
– Não sei Henry, algo não está bem – Henry tocou-o
nos ombros, apontou para a frente e disse.
– Não há nada lá.
– Eu sei, e é isso que me incomoda.
– Alguns dizem que você vê e ouve coisas. É
verdade?
– Sim.
– O que vê?
– Não estou vendo nada, somente tenho esta sensação
estranha.
– Aag, pedirei aos homens que fiquem em prontidão. Podemos
simular um treino, algo para descarregar a sua tensão e dos soldados, e aposto
que isto o deixará menos nervoso.
– É uma boa ideia, mas não vamos incomodá-los. Isto
é coisa minha e se os homens souberem que estão treinando quando deveriam estar
só de vigília perderei o moral com eles.
– Você é quem sabe Aag, mas se precisar me fale.
Vou comentar com meus homens de confiança e pedir a eles que dediquem mais
atenção na noite de hoje.
– Faça isso por mim.
Henry virou as costas e antes que desse mais alguns
passos, Aag o chamou. Henry olhou para o rosto surpreso de Aag, que apontava
com o dedo e dizia:
– Olhe aquilo.
Henry não viu nada e apenas se sentiu perdido, pois
não sabia o que procurar, imaginou que o amigo estava enlouquecendo.
– À nossa esquerda, no alto, não é fumaça subindo?
– perguntou Aag.
Henry observou toda a planície e seus olhos
percorreram cada ponto da descida, pois se havia fumaça que ele não estava
vendo deveria haver uma fogueira, mas não viu nada. Aag apontou para a Lua
Crisis, que era das três luas de Ifíanor, a que estava mais baixa, embora fosse
a menor e menos iluminada. Henry olhou e por instantes não viu nada até que pôde
ver fumaça subindo graças à luz da lua. Era pouca, seus olhos desceram até o
ponto em que deveria haver uma fogueira, mas não viram nada. Ele olhou mais
detidamente e pôde ver outra torrente de fumaça subindo a alguns metros da
primeira. Apontou para ela e com a garganta seca disse:
– Olha outra
ali, Aag.
– Estou vendo. É melhor tocarmos o sino, o que
acha?
– Acho muito estranho uma fumaça sem fogo.
– Vai lá Henry.
– Tudo bem, Aag.
Quando Henry começou a caminhar, alguns gritos
chamaram sua atenção. Olhou para trás e viu o silo em chamas, fogo dentro e
fora do castelo. Aquilo inquietou ainda mais Aag.
***
Selene cobriu rapidamente o seu corpo e seus
cabelos loiros caíram sobre uma manta branca. As sacerdotisas olhavam
atordoadas para a rapidez com que ela vestia sua armadura e, preocupadas,
aguardavam ordens.
– Chamem Alfris aqui agora, e mandem os magos
auxiliarem Aag no que precisar imediatamente.
Uma das sacerdotisas confusa disse:
– Mas, Mestra, o que você viu? Não está acontecendo
nada. Está tudo calmo lá fora.
– Faça o que eu digo. O tom de sua voz não dava
margem para questionamentos, a sacerdotisa correu para fazer o que lhe fora
ordenado. Quando uma outra ia sair para acompanhá-la, Selene ordenou:
– As demais fiquem aqui. Vão me ajudar com seus
poderes a ativar o talismã.
– O que? gritou uma das sacerdotisas. Mas ele
nunca... – suas palavras foram cortadas pelo olhar frio e incisivo de Selene.
– Preparem-se. Um inimigo está se aproximando,
temos pouco tempo.
***
Tanor contemplava o castelo de Dankar a sua frente,
o vento batia na sua longa capa e seus cabelos negros sacudiam. Ele observava e
não era observado, apenas aguardando um sinal. Seu contato dentro do castelo
colocaria fogo em breve no silo. É hora
de partir com ou sem sinal – pensou.
Olhou para
trás e seu pequeno grupo estava ali reunido. Os ciclopes irmãos Andrû e Andril
com seus quase quatro metros municiavam as duas catapultas. Alessandra e os
outros dois magos mantinham a cortina de invisibilidade, que permitia que não
fossem vistos ao se aproximarem, nem o poder da feiticeira fosse capaz de notá-los.
Os anões Ygor e Groom eram seus auxiliares diretos junto com o necromancer Jouthan.
Groom dava as últimas instruções para seus
comandados – cerca de cem entre soldados e arqueiros.
Jouthan estava de frente para uma pedra de uns dois
metros, concentrando-se na rocha, suas mãos envoltas de uma aura cinza. Reclinou-se
e riscou o chão como um pêndulo, primeiro com sua mão direita depois com a
esquerda, afastou-se e a rocha começou a tomar forma. Ela tremia, algo queria
sair, estava moldando-se de dentro para fora. A rocha vibrava como se fosse
explodir e os pássaros que estavam em uma árvore próxima voaram espantados. A
coisa então foi se acalmando e ele pôde ver que ela parecia com algo humano,
era um golem de pedra, um gigante formado de rocha, sem vida, apenas controlado
por seu criador. Isso sempre me assusta
não importa quantas vezes veja.
Alessandra
se aproximou de Tanor – seus cabelos loiros, curtos à altura da nuca,
irradiavam mais a sua beleza e seus grandes olhos esmeraldas parecendo
presentes dados ao seu rosto fino e branco destacavam seu corpo franzino. Tanor
pensou como ela poderia enganar muitos que a julgassem pela aparência, mas era
uma das magas guerreiras mais poderosas de todo o planeta.
– Senhor, está na hora.
– Obrigado, Alessandra. – Tanor deu um assobio alto
e então um dragão branco desceu voando até eles. Era muito maior que o maior
dos touros da região de Dankar, mas ainda assim era jovem. Tinha pouco mais de
cem anos, possuía longas presas e uma escama branca brilhante e bastante
resistente, a couraça já havia se consolidado, o animal se apoiava nas quatro
patas e era mais alto que os ciclopes. Ele abaixou-se e estendeu a cabeça até
os braços de Tanor como um cão procurando o afago do dono, que por sua vez acariciou
o animal e este correspondeu. Havia ali um vínculo muito forte, nascido de uma
promessa de sangue, talvez por isso Sef quase não falava nada.
– Já estou pronto, mas antes... – Tanor gritou –
Ygor e Groom, venham comigo. O anão que estava coberto ora por sua armadura ora
pela longa barba negra segurou dois machados e se aproximou dele. Este era
Ygor. Groom era idêntico a Ygor, eram gêmeos. – Podem montar – os anões olharam
desconfiados. Tanor riu. – Sef não irá atacá-los – ambos, ainda sem muita
confiança, entreolharam-se e com cautela excessiva subiram. O animal deu um
pequena refogueada, que os incomodou, mas depois relaxou. Tanor olhou
diretamente para os olhos acolhedores de Alessandra e disse:
– Pode começar – ela ergueu as duas mãos, esticou
as palmas, depois aproximou-as da boca como se fosse orar e soprou. Uma pequena
névoa ficou pairando e ela empurrou na direção dos três. Quando Tanor montou no
dragão ela pronunciou:
– OFINEM ACHARUM INVISIBLE. Eles ficaram
invisíveis aos olhos dos demais, mas Tanor, Ygor e Sef podiam vê-los. Era o
truque da barreira sendo usado neles. Alessandra sorriu e caminhou na direção
de Tanor, estendeu sua boca e para quem olhasse parecia que estava beijando o
ar, mas ele a correspondia e afagava seu pescoço. Ela se afastou e disse:
– Agora vá, que a magia distante de mim só vai
durar uns dez minutos.
– É mais que suficiente – ele disse algo incompreensível
no ouvido do dragão e este ergueu voo. Eles se encaminhavam para as costas do
castelo, rumo à montanha, quando Tanor viu seu arqueiros ascendendo a ponta de
suas flechas e Jouthan criando um outro golem, este de fogo, e quando sobrevoou
o pátio do castelo viu o silo em chamas. Tudo
corre como o previsto – pensou.
***
Alfris perseguiu um vulto misterioso que ele viu
sair correndo do silo. Antes deu ordens para apagarem o fogo. Quando chegou ao
final do pátio próximo à sala de armas, o vulto parou. Estava encoberto por um
capuz. Alfris já havia percebido que se tratava de uma mulher e ergueu sua
espada. O fraco brilho da lua Crisis foi suficiente para iluminar não só a arma,
como todo o seu elmo, a única coisa visível em seu rosto eram seus olhos. A
mulher à frente não hesitou e sacou uma pequena adaga. Alfris ficou imóvel. Mas esta adaga é idêntica à que dei a Lessa.
Aquilo o inquietou.
– Onde você conseguiu esta adaga? – A estranha
permaneceu em silêncio analisando o homem à sua frente e sua postura defensiva
repentinamente cedeu e ela o interpelou:
– É você Alfris? – Para tristeza dele a voz era
familiar. Ao longe pôde escutar alguém dizer – “Alguém está atacando” – mas sua
mente estava focada apenas naquela figura misteriosa a sua frente e em seu
pensamento. Não pode ser ela. Ele
retirou o seu elmo, jogou-o no chão e disse:
– Sou eu mesmo. Por que fez isso Lessa? – A mulher
retirou seu capuz e ele pôde comprovar a verdade de suas palavras. Aquilo só
podia ser um pesadelo, pensava, mas ela o fitava com um olhar de resignação. Havia
algo a mais. Percebeu que aquilo no olhar dela, que raras vezes em sua vida já
encontrara, era uma devoção rara. Ela olhava para ele e parecia ver através de
sua armadura, de seu corpo, da carne... ia além, e ele se sentiu nu. Algo que
não iria compreender e que palavras não explicariam.
– Por que tinha de ser feito, você nunca
entenderia.
– Tente me explicar. Por enquanto devo prendê-la,
mas sei que a feiticeira poderia perdoá-la.
– Alfris, eu amo Aag e ele nunca entenderia meus
motivos, portanto não deixe que ele saiba o que você viu hoje.
– Infelizmente eu não posso, você o colocou em
perigo e a todos nós.
– Alfris, a morte quando certa, sempre vem com um
olhar conhecido e com julgamento.
– Ninguém precisa morrer Lessa.
Ela sorriu e ergueu novamente a adaga com a mão direita
segurando firme seu punho. Ele não se mobilizou, não estava disposto a lutar
contra ela. Mas num gesto rápido, houve uma ruptura, um grito e sangue. A
mulher caiu de joelhos. Alfris correu para socorrê-la e com uma certa
facilidade retirou a lâmina da cintura dela. Ela havia cravado forte e rasgado
seu ventre, o sangue jorrava e as mãos dele se confundiam em meio aos órgãos
dela.
– Por que você fez isso Lessa? Por quê? Que loucura
foi esta? – As lágrimas caiam no rosto quase sem vida dela.
– Não diga a Aag que fui eu, ele nunca vai entender,
mas eu tinha que fazer – Ela cuspia sangue enquanto falava.
– Não fale mais nada – respondeu Alfris, mas não
era preciso, pois seus grandes olhos negros fecharam-se para o mundo. Ele a
carregou nos braços e caminhou até o salão de armas, mesmo sabendo que estavam
sendo atacados.
***
Aag não teve tempo de olhar para o silo, pois viu
várias flechas em chamas, riscos flamejantes que cortavam o céu negro em sua
direção. Teve tempo e agilidade suficientes para se esquivar e ergueu seu
escudo enquanto esperava pelo próximo ataque. Tudo estava acontecendo muito
rápido, os homens haviam sido pegos de surpresa, estavam sem iniciativa. Alguns
foram atingidos pelas flechas, outros auxiliavam os feridos e mais alguns
corriam para apagar o fogo no silo, não conseguiam ver que tinham sido atacados.
Um rápido olhar para a planície e nada, não via ninguém. Imaginava várias
coisas, mas não sabia dar ordem aos pensamentos. Henry estava à sua frente,
atordoado e incrédulo, o mesmo pensamento passava pela sua cabeça – O que os atacara? Mas um outro
pensamento venceu a dúvida inicial, ele se ergueu e gritou para o companheiro:
– Henry, os sinos! – Este, como se acordasse de um
sonho, assimilou a ordem do amigo e correu em direção à torre central. Aag
olhou para o horizonte buscando uma resposta. Seria magia? Mas como alguém criaria tantas flechas e com que
finalidade? Não podia ser isso. Pensou em invisibilidade, mas, para que alguém
conseguisse ocultar tantas pessoas e por tanto tempo – afinal era um longo caminho
até os portões do castelo – era preciso um mago muito poderoso, muito mais que
a feiticeira Selene, e Aag não achava que tal pessoa existisse. Seus
pensamentos foram interrompidos por outra saraivada de flechas que vinham. Ergueu
o escudo novamente e se defendeu, outros homens faziam o mesmo e os sinos agora
estavam tocando estridentes.
Quando olhou novamente para frente, viu quatro
enormes pedras virem na direção do castelo arremessadas certamente por uma
catapulta, mas aquilo não o preocupava. O que o atordoava era a direção de uma
delas, que ia de encontro à torre onde Henry estava. Aag não teve tempo de
gritar. A pedra atingiu seu alvo com eficiência destruindo boa parte da torre,
ele só pode ver um dos sinos caindo junto com o corpo de seu amigo no pátio do
castelo. Não teve tempo de chorar ou se lamentar.
Aag chamou alguns homens e ordenou que os arqueiros
se preparassem.
– Mas onde vamos atirar? Em que? – disse um dos
arqueiros.
– Vamos atirar no mesmo ângulo em que as flechas
estão vindo, certamente os atiradores deles estão sendo ocultados por magia.
Agora preparem-se. Espalhem a minha
ordem por toda a linha de defesa da muralha, vamos atirar à vontade.
Os homens estenderam seus arcos e quando um nova
chuva de flechas veio em sua direção, eles já haviam atirado, se defenderam e
depois olharam como se esperassem uma resposta. Um dos homens falou:
– Não acertamos nada senhor.
– Acertamos sim. Olhem e procurem as
nossas flechas. – Os homens olharam e nada viram.
– Não há nada lá, senhor.
– Mas é isto mesmo, elas estão
acobertadas por magia. Existe um exército lá se escondendo de nós. Estão
invisíveis, e se assim estão fazendo é porque não tem capacidade de enfrentar
nosso exército em condições reais, portanto disparem mais. Os homens, tomados por uma nova
disposição, dispararam mais confiantes. E quando outra saraivada de flechas
veio em direção a eles, já estavam mais preparados. Aag se preocupava com os
pedregulhos, que certamente viriam de novo. Mal tinha pensado nisto e viu
vários deles vindo – um deles vinha em sua direção.
– Protejam-se, homens! – Aag abaixou-se,
preparando-se para o impacto. Era a única coisa que podia fazer, mas nada
ocorreu e quando levantou os olhos, a enorme pedra flutuava alguns metros acima
de sua cabeça. Ele buscou por explicações e viu os seis magos na ponte que unia
o castelo à muralha de frente, manipulando-a como uma marionete com fios invisíveis,
e jogando a frente do castelo.
Aag chamou quatro de seus homens e
correu até os magos. Emir era o chefe dos magos. Ele olhava para a planície
como se medisse palmo a palmo o campo a sua frente, ergueu suas mãos, um raio
circundou os seus dois braços ao mesmo tempo em que disse SIRIUS LITHIUM. Disparou na direção do campo, mas o raio foi
interceptado por um outro que saiu da planície como se brotasse do chão.
– Temos alguns magos poderosos ali,
Aag. Vou precisar da ajuda de vocês e será perigoso.
– Emir, desde que consiga romper
esta barreira de invisibilidade, terá toda a ajuda.
– Sim, mas nos atacarão quando
tentarmos desfazer a magia deles, preciso que nos proteja até lá.
– Homens, façam uma barreira à
frente deles com seus escudos. Kurt, busque mais seis homens e tirem estes
corpos daqui. Peça aos arqueiros que atirem no local de onde veio o raio.
Emir estava concentrado enquanto os
demais magos o rodeavam e aguardavam pelos reforços de Kurt. O que Emir pede é praticamente um suicídio,
e onde está Alfris? Deveria estar aqui nos comandando – pensou Aag.
Os soldados vinham de todas as
partes, inclusive do pátio. Parecia que o fogo estava sendo contido, mas neste
momento duas coisas preocupavam Aag. Primeiro uma bola de fogo que vinha de encontro
ao lado oposto onde ele estava e atingiria o pátio. Mas o segundo fato, este
sim, despertou medo nele. Ouviu um canto sombrio e profano, algo que nenhum ser
deveria escutar. Embora fosse ilógico, aquilo parecia o sussurar da morte.
Olhou para o lado e viu os homens
inquietos e nervosos. Tremiam, tinham os pelos ouriçados, a voz vinha de todos
os lugares ao mesmo tempo. Aag paralisou por alguns segundos. Precisou de uma
certa força de vontade para se recompor e, quando olhou para o pátio onde o
sino e o corpo de seu amigo Henry se encontravam, viu o corpo dele se mexendo,
tremendo, como se ainda estivesse vivo. As mãos cruzaram-se rasgando uma à
outra até o esqueleto e em segundos não havia mais carne ou sangue. O corpo foi
ficando de pé; a pele, os tecidos e músculos caiam como se estivessem presos
aos ossos por uma cola fraca. Apenas o esqueleto com dois globos oculares
restou e aquele ser que desafiava a morte e a compreensão, vomitado de seu
próprio corpo morto, olhou para seus restos como se aquilo nada significasse,
correu a mão pelo cinto e pegou a espada. Um soldado que estava no pátio
assistia a tudo incrédulo, foi quando aquela caveira correu em sua direção
erguendo a espada para atingi-lo, e após matá-lo procurou outro. Aag pôde jurar que ela havia dado uma
risada. Um soldado gritou para ele descer.
– Não posso, tenho que defender os
magos – olhou para os cadáveres na muralha e o mesmo processo se repetia, eles
ganhavam vida. Então gritou – Ataquem as caveiras homens, temos um necromancer
por perto. – Rapidamente os soldados lutavam com os novos inimigos enquanto os
magos por alguns instantes ficaram indefesos. Não havia escudos, nada. Qualquer
flecha poderia atingi-los, mas não foi uma flecha que veio em sua direção. Foi
outro raio vindo do nada acima do chão, mas Emir levantou uma barreira de luz
azul que os defendeu.
Cerca de cinquenta homens estavam nas muralhas
enfrentando o que quer que aparecesse. O efeito surpresa do ataque já não era mais
tão efetivo. Outros tantos estavam no pátio enfrentando as caveiras vivas, pois
elas tombavam com uma espadada e logo se erguiam e seu corpo ser recompunha. Havia
luta em todo o castelo e Aag ainda não vira um inimigo vivo sequer. Se aquilo
era uma invasão, já estava tornando-se previsível e os homens, embora ocupados
com esse novo empecilho, encontravam-se preparados para um ataque direto.
Passados alguns segundos, a estranha voz cessou e guerreiros que tombavam não
voltavam à vida como caveiras.
– Isto está longe de ser o fim, homens. Continuem
em guarda.
De repente uma explosão no portão
central – dois gigantes, um de pedra e um de fogo, tinham entre 8 e 10 metros,
grandes braços, eram golens criados através de magia. Já havia visto Emir criar um uma vez, mas que merda, não era nem a
metade do tamanho daqueles. O de fogo diferenciava-se do outro nas chamas
que saiam das frestas de seu corpo. Ambos entraram arrancando o restante do
portão e atacando os soldados no pátio e novamente Aag escutou aquela melodia que
dava vida aos mortos, aquele som profano e antinatural. Outras caveiras surgiam
de cadáveres, maculando aqueles corpos e junto a isso uma nova saraivada de
flechas vinha em direção ao castelo, foi quando sentiu alguém tocar seu ombro
esquerdo e seu corpo projetou-se para atacar, mas conteve-se a tempo. Era
Alfris.
***
Tanor não teve dificuldades em entrar
no castelo pela parte de cima. Seu dragão alçou voo esperando um sinal para
voltar e pegar seu mestre. Ele e seus dois companheiros anões encontraram pouca
resistência – um a um os soldados que apareciam eram vítimas dos machados
rápidos dos pequenos.
Quando o trio chegou ao salão do talismã,
este se encontrava vazio. Tanor olhou em volta e, como se farejasse algo
invisível, trançava as mãos no ar, procurando algo que o olfato deixava escapar.
Os anões olhavam aquilo indiferentes. Mesmo que estivessem estranhando tudo,
não deixaram transparecer. Ele então parou e pôde ver traços verdes de energia
que pairavam no ambiente. Os anões não viam, mas ele firmou sua posição e mais
atento disse:
– O talismã foi ativado, tenham
cuidado. Vamos procurar a feiticeira sem nos separarmos.
***
Alessandra, junto com os outros dois
magos, mantinham a barreira de invisibilidade firme contra a investida dos
magos do castelo e várias vezes disparavam um ou outro raio de energia em direção
aos seis. Não era nada poderoso, ela sabia que a intenção era só distrair, mas
não precisou fazê-lo por muito tempo, pois no momento em que os golens
invadiram, todos no castelo, inclusive os magos, detiveram suas atenções nos
dois seres. Com o comando que lhe era natural, ordenou aos arqueiros:
– Atirem mais duas vezes e vamos
embora, desarmem as catapultas e levem tudo o que pode nos entregar.
Andrû olhou desconfiado, mas nada disse,
ao contrário de Cássio, o chefe dos soldados:
– Minha senhora, o senhor Tanor
ainda está lá e se eu mandar os homens invadirem, podemos tomar o castelo
facilmente.
– Cássio, não é nossa missão tomar o
castelo, não queremos que ninguém saiba quem somos, não por agora. Quanto a
Tanor, ele saíra do castelo tão facilmente quanto entrou. Os homens de Dankar
já têm preocupações demais com os golens e mortos-vivos, não há necessidade de
sacrificarmos ninguém. A melhor vitória é aquela que não precisa ser travada.
O chefe dos guardas não disse mais
nada a Alessandra, apenas sinalizou para que seus homens se preparassem para se
retirar. E cinco minutos depois eles estavam saindo da frente do castelo, da
mesma forma com que entraram: sem serem notados, deixando para trás somente os
golens, a morte e a dúvida.
***
Uma caveira atacou Aag antes que ele entrasse pela
passagem secreta ao lado do muro. O sangue frio de Alfris perante os dois
gigantes ainda estava em sua memória e só teve tempo de dizer:
– Aag, vá atrás da feiticeira.
Ele está
te protegendo, mas de outra forma – disse a voz em sua mente. Aag correu pelos
corredores estreitos da passagem, e em sua cabeça as vozes disparavam e
gritavam: vida, morte, salvar, morrer,
lutar. Aquelas palavras poderiam até fazer sentido, mas ele não queria
pensar nisso agora. Antes ficava durante noites parado, escrevendo o que elas
tinham para dizer, agora não perderia um segundo.
Ao final do corredor, ativou a passagem que dava
para os aposentos da feiticeira. Se seguisse reto sairia no vilarejo, mas tinha
que entrar e encontrá-la. Escutou vozes e entrou na pequena sala anterior ao
salão, por trás de uma falsa biblioteca, mas não havia ninguém – as vozes
vinham do salão principal. Correu como se sua vida dependesse daquilo, com a
espada em punho. Abriu a porta e viu a feiticeira e três de suas auxiliares na
frente do salão, na parte oposta onde se encontrava. Do outro lado, dois anões
e um homem estavam a quatro ou cinco metros, haviam descido as escadas, onde
havia corpos de soldados. Os dois pequenos olhavam para ele como se já tivessem
decidido seu destino, enquanto o outro homem nem mesmo se virou, concentrava-se
nas mulheres à frente.
***
Os dois gigantes destruíam tudo com o que
deparavam e o que estava em chamas ainda era mais perigoso, porque vez ou outra
soprava um fogo quase tão poderoso quanto um dragão. Alguns soldados conseguiam
se esquivar, outros não. Alfris gritou para que Emir atacasse os golens, mas
este respondeu que estava quase conseguindo quebrar a barreira de
invisibilidade.
Alfris estranhou o fato de Kurt e
alguns homens estarem com os escudos chamuscados, mas não havia baixas ali,
apenas caveiras ao chão. Aparentemente quando surgia uma, alguns soldados saíam
de trás dos magos e lutavam com elas, jogando as suas cabeças no pátio, e
aquilo fazia com que não se levantassem de novo.
– Não importa, se não detivermos
aquelas duas bestas, o castelo sucumbirá. Arrume uma forma de detê-los, nós
vamos distraí-los. Kurt, você e os outros vão lá para baixo e peguem os
machados.
– Senhor Alfris, estaremos
suscetíveis aos ataques mágicos deles se nos concentrarmos nos golens –
retrucou Emir.
– É um risco que iremos correr.
– Tenho uma idéia, chefe Alfris –
disse Emir.
– Diga.
– Eu acho que consigo reduzir o
tamanho deles pela metade. Só preciso de alguns minutos.
– Faça isso. – Alfris alternava
entre dar ordens e se defender, o pátio tinha se tornado uma arena.
Os magos do alto da murada
dispararam esferas e mais esferas de energia nos golens. Quando estes iam
revidar, eram atacados por machados e lanças dos homens que estavam na parte de
baixo. As caveiras, uma a uma, eram separadas de suas cabeças e não retornavam.
***
Ygor ergueu os olhos e fitando Aag
disse:
– Achei que não teríamos mais
diversão Groom, uma vez que anões não gostam de lutar com mulheres.
Aag não se deixou intimidar pelas palavras hostis
do anão, levantou sua espada e preocupou-se com seu objetivo. Não demorou um
segundo para que dois grandes machados começassem a dançar na direção do jovem
guerreiro. Ele correu e saltou por cima dos dois, não tomou conhecimento e
correu, passando ao lado de Tanor, erguendo a espada para atingi-lo. Foi quando
sentiu seu corpo ser arremessado ao lado da parede. Ele não viu como, nem
quando o homem fez aquilo, foi muito rápido, mas aquele golpe invisível o
acertou com muita força. Ergueu-se aos poucos, os anões olharam incrédulos e por
alguns segundos se detiveram, pensando que estava morto, mas ficaram surpresos
ao verem que ele foi se arrastando em direção às sacerdotisas que o ajudaram a
se levantar. Os anões se posicionavam para atacar. Durante alguns segundos,
ninguém disse nada.
O silêncio ainda permanecia uma muralha instransponível
naquela sala. E agora somente duas pessoas pareciam aptas a quebrá-lo. Tanor
com um tom debochado, mas colérico:
– Parece que até com o talismã ativado você tem
medo Selene, ou será que ficou fraca? – Selene observava a tensão no rosto de
Tanor, seus poderes estranhamente estavam sendo anulados por ele.
– Você nunca foi capaz de me superar, porque hoje
seria diferente? O que quer com o talismã?
– Você é a guardiã dele e nem sabe toda a sua
potencialidade, mas isto não importa, porque além de conseguir o que eu vim
buscar, vou poder retribuir-lhe o que fez a minha irmã.
Duas coisas
aconteceram ao mesmo tempo. Os anões investiram contra Aag e Tanor ficou
encoberto com uma aura azul.
***
Quando os golens ficaram menores e recuaram, Alfris
ordenou que os homens atacassem as pernas de ambos e os magos atacaram as
cabeças.
– Vou mostrar a estes invasores que nós também
sabemos alguns truques mágicos.
Alfris pegou um grande martelo de batalha e segurou-o
com a mão direita, enquanto a mão esquerda parecia ungi-lo. Ao mesmo tempo em
que ele pronunciava algumas palavras mágicas, o martelo vibrou em sua mão, ele
sorriu e correu por toda a murada, até que pulou e acertou a cabeça do golem de
pedra. O martelo reverberou, como se fosse o eco de centenas de marretadas. A
onda de ar jogou as caveiras que restavam no chão, enquanto rachava o golem em
pedaços. Até mesmo o gigante em chamas recuou com a onda sonora que se
propagou. Alfris, embora fosse corpulento e forte, caiu graciosamente no chão,
tal qual um elfo.
Os segundos que levaram para que o golem de fogo
recuasse e retomasse a investida foram suficientes para que Alfris corresse na
direção do inimigo e o acertasse na perna. Novamente o martelo ecoou com aquela
fusão de força e magia e estilhaçou a perna direita do monstro. Emir e os
demais magos lançaram uma rajada de magia conjunta que destruiu o golem,
fazendo-o desfazer-se em pequenas pedras flamejantes, que logo se apagaram.
Os homens comemoravam, impressionados com as
ações de Alfris. Não há tempo de
comemorar – pensou. – Não acabou, homens. Quero todos em formação de
combate agora, vamos sair do castelo e enfrentar quem quer que esteja nos atacando.
– Rapidamente os soldados estavam lado a lado com espadas e escudos prontos e
marcharam para fora do castelo.
***
Os machados dos anões subiam e
desciam em sincronia, e Aag tinha dificuldades em atacar e defender ao mesmo
tempo. Tanor investia com raios mágicos contra Selene – uma das feiticeiras que
a ajudava já havia caído ao chão. Aag preocupava-se com elas, mas aquele
confronto mágico não era para ele, além dos anões estarem o atacando
rapidamente, não sabia muita coisa de magia. Groom ria a cada golpe que
disparava contra Aag, este se desviava com desenvoltura. Os dois anões pareciam
se divertir. Tanor disse:
– Embora o talismã aumente o poder
mágico do portador consideravelmente, você parece estar se contendo Selene, ou
melhor, acho que não é capaz de me tocar. – Havia deboche em sua voz.
– Você precisa de truques para
anular os meus poderes. De quem é esta sombra atrás de você? – Ele não
respondeu. Selene estranhava, pois qualquer coisa que fazia era facilmente
repelida. Havia tentado dois ataques mentais e uma coisa se colocava entre ela
e ele. Era estranho, não via nenhuma outra presença ali, mas quando conseguia
fazer ataques mágicos eram fracos e débeis, até sua velocidade era menor. Tanor nunca foi capaz de me derrotar, mas
agora faz isso facilmente, mesmo com o talismã multiplicando meus poderes estou
acuada.
– Você não conhece o poder do
Talismã, Tanor.
– Você não tem o direito de
portá-lo, não depois do que fez a Tania.
– Então é este o motivo de estar
atacando meu castelo e as pessoas aqui?
– Se fosse por isto eu viria sozinho
enfrentá-la. Não vim aqui para me vingar, mas as circunstâncias cominaram os meus
objetivos com a vontade de retribuir-lhe o que fez a ela. Você e Círdan aliaram-se
para matá-la, eu deveria ter visto isto quando saímos de Agonia. Ao terminar
esta frase, Tanor bateu as palmas das mãos e a energia azul brilhante que saiu
de seu corpo disparou rapidamente contra as sacerdotisas. O talismã emitiu uma
luz e conseguiu repelir o ataque a Selene, mas as outras duas auxiliares caíram
ao chão mortas.
– Pelo visto você sabe utilizar a
poder defensivo do talismã, mas não creio que ele irá protegê-la por muito
tempo. O homem começou a proferir algumas palavras, a feiticeira aproveitou o
instante e lançou duas esferas vermelhas de pura energia que se dispersaram
antes de chegar a Tanor. Selene olhou incrédula. Tenho que descobrir o que está o protegendo e só existe uma forma, um
ataque direto à sua alma.
O homem proferia suas palavras,
indiferente a ela e aos demais. Selene soube que tinha pouco tempo, sua alma
projetou-se para atacar a dele, mas no momento do golpe uma sombra surgiu
saindo de dentro dele, negra e maligna, defendeu o ataque e sorriu para ela. O
restante de seu rosto era amorfo.
Tenho que
recuar e sair daqui, qualquer coisa que fizer será inútil. – Selene suava aterrorizada.
– Temos que sair daqui Aag, não vou
poder conter o poder dele. – Aag recuou alguns passos e posicionou-se entre
ela, os anões e atrás deles Tanor, que continuava a proferir palavras que Aag
não conseguia compreender.
– Fuja pela passagem, eu vou ganhar
tempo. Em breve meu irmão estará aqui.
– Não posso ir sem você Aag.
– Não se preocupe, vou logo atrás –
mas ele não foi, nem mesmo ela saiu dali, a magia de Tanor não permitia.
Groom correu para atacá-lo com
ferocidade. Aag deteve o ataque com sua espada, derrubando-o logo após com uma
rasteira. O anão não pareceu sentir o tombo, pois rapidamente aproveitando a
investida do irmão, se recompôs. Aag lutava com os dois sem medo, sua agilidade
compensava o fato de estar em desvantagem. Merda,
se fosse apenas um – pensou.
Selene disse algumas palavras em um
língua que Aag não conhecia e o Talismã brilhou intensamente. No momento em que
Tanor abria seus olhos e sua sombra se projetava maior atrás dele, a aura azul
ficou negra e começou a movimentar-se com rapidez. Seus braços ergueram-se e
ele conjurou uma grande esfera daquela energia negra que prendeu Selene. A
feiticeira se debatia como se estivesse sem fôlego, depois tudo aconteceu muito
rápido.
Aag interpôs, e a explosão de
energia arremessou-o a uns quatro metros. Selene atacou Tanor com magia, mas
este repeliu tão facilmente, que pareceu não se esforçar, então ele projetou-a
na parede, seu corpo ficou flutuando preso, como se pulseiras estivessem
crucificando-a, mas nada visível a prendia, era apenas magia. Com um gesto de
mão ele jogou-a no chão e com outro o talismã foi arrancado de seu pescoço para
a sua mão esquerda. Caminhou a passos lentos até a feiticeira, enquanto os
anões aguardavam.
***
Alfris corria para o castelo, aquele ataque somente
poderia ter sido um engodo. Não havia ninguém na planície, apenas vestígios de
fogueira e flechas ao chão. Ninguém estava ali, nenhum homem. Não havia nem
sangue, seus arqueiros não atingiram o inimigo. Agora seus pensamentos estavam
em Aag, Lessa e Selene.
***
– O que minha irmã disse antes que você a matasse?
– perguntou Tanor.
– Sua irmã havia se transformado em um monstro e eu
fui misericordiosa com ela. Apenas isso e ela agradeceu, foi o desejo dela.
– Você mente, mas eu não vou ser misericordioso com
você como foi com ela. Eu lhe trouxe um presente e você sentirá o mesmo ódio
que senti ao ser traído por você e Círdan.
Tanor com gesto de mão fez com que o corpo da
feiticeira se levantasse até que ficasse na altura do seu. Caminhou mais alguns
passos, ela ainda estava presa e não conseguia se mover por causa da magia
dele. O homem então inclinou o pescoço para o lado, quase tocando o ombro
direito, e olhou-a nos olhos – eram os olhos dele que a olhavam, mas ela sentia
que aquela outra coisa que tinha lhe sorrido era quem realmente a fitava
sedenta por Selene.
Tanor não se deteve quando Aag gritou e correu em
sua direção. Continuou ali olhando e aquilo assustava Selene. Era a primeira
vez que sentia medo em combate. Não temia a morte, mas o que estava ali oculto,
isso ela temia.
Groom colocou-se entre Tanor e Aag. Este conseguiu
se desviar e cravar uma adaga na perna do anão e o pequeno gritou de dor, mas o
golpe de Ygor foi rápido e o machado o penetrou no peito. Enquanto ele caía,
viu uma coisa negra sair da boca de Tanor. Aquilo parecia rastejar no ar, era
uma sombra, era maléfico e aos poucos entrava na boca de Selene e, no meio de
suas pernas, eles se beijaram.
Selene sentia-se violentada, mas de uma forma mais
profunda e hedionda, sua alma é que estava aceitando aquela coisa que a invadia
lentamente em todos cantos de seu corpo. Queria vomitar, mas estava paralisada,
o mal adentrava como se deliciando de cada parte que tocava. Se pudesse morrer
teria feito. Na medida em que aquela sombra ganhava seu corpo, injetava nela um
sentimento, aquilo havia sido criado com ódio, uma magia inominável. Odiou
Tanor, odiou suas sacerdotisas, odiou seu pai e até mesmo Aag que caiu para
proteger-lhe, mas odiou mais ainda o fato de ter tido um orgasmo quando aquela
magia negra terminou de invadi-la entre suas pernas. Quando Tanor terminou, sua
fisionomia mudou, era como se fosse seu antigo amigo, havia lágrimas em seus
olhos e ele disse:
– Desculpe-me, mas foi preciso, é por algo maior
que nós dois. – Não houve tempo para responder... queria perguntar por que?
Ela caiu ao lado de Aag, seu corpo se contorcia
tentando rejeitar o corpo estranho, lutando, até que a coisa a venceu e ela
desmaiou. Tanor cambaleou antes de se levantar.
Alfris chegou a tempo de ver a feiticeira tombar e
correu para atacar o anão Groom que, mesmo com a perna machucada colocou-se ao
lado do gêmeo, ambos se defendiam do ataque feroz e agressivo de Alfris. Groom
ria, Ygor não.
Tanor, utilizando novamente sua magia e com um
gesto de braço, primeiramente fez Alfris flutuar, depois o arremessou contra a
parede. O impacto foi forte o suficiente para rachar o seu elmo no meio. O
homem ainda assim tentou levantar-se, mas seus inimigos se retiravam. Morreria
se investisse novamente contra eles, e tinha que se preocupar com a feiticeira
e com seu irmão.
Com dificuldade, ele caminhou para o corpo de Aag. Queimado
pela magia e cortado do lado direito pelo machado, o jovem engasgava com o
próprio sangue, mas fez um esforço para cuspir e dizer algo.
– Alfris, me escute – ele segurou o braço do irmão
que o tinha colocado no seu colo.
– Não precisa dizer nada, Aag. – As lágrimas
escorriam pelos olhos de Alfris.
– É importante... você tem que proteger Selene. O
mal que foi desperto pode retornar, a criança profetizada vai nascer, o selo
será quebrado.
Alfris não via sentindo nas palavras do irmão, mas
as memorizava.
– Irmão, cuide de minha filha para
nós. Lisa terá um papel importante. – O garoto lutava para pronunciar cada
palavra, o sangue jorrava de seu ferimento, não havia cura para aquilo e Alfris
sabia. Queria que o irmão parasse de falar e morresse em paz, mas ele não
desejava isso, escutava e olhava para o irmão sabendo que iria perdê-lo. Ficou
imaginando se Aag sabia que Lessa havia morrido, por causa de sua última frase.
Como se lesse seus pensamentos, Aag disse:
– Eu sei Alfris, não se preocupe. Tenho
um presente para você. – Apertou o braço de Alfris, que sentiu um choque vindo
de seu irmão, e neste instante Aag morreu. Alfris sentiu muita dor pela perda,
mas sentiu ódio de sua incapacidade de salvá-lo e jurou vingança contra os
anões e Tanor. Olhou para o corpo morto do irmão e ergueu-o no colo. Selene já
havia acordado e chorava. Outros soldados entravam na sala e Alfris deu ordem
para que cuidassem dela. Levou o irmão até o corpo da esposa. Iria enterrá-los
juntos, lado a lado, e jurou ali que o mal que fizera isso a sua família iria
pagar, especialmente o anão. Cada respiração dele neste mundo seria uma ofensa
à existência de Alfris.
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